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O Eça de Queirós d'O primo Basílio






BREVE INTRODUÇÃO À OBRA QUEIROSIANA:

Existem sem dúvida vários Eça, dado o prosista poveiro demonstrar de princípio a fim da sua obra bem diferentes perfis. A presença do exotismo e do mundo onírico, e a capacidade para causar estranheza no leitor, cobra relevância n'O mandarim, um esquisito romance breve, quase poderíamos falar em novela. A história fantástica de um mesquinho amanuense que por arte de magia se torna um fabuloso senhor a quem nenhum prazer é vedado, converte-a numa exceção dentro da sua produção realista. Assim mesmo, já n'O mistério da estrada de Sintra, que foi a sua primeira tentativa de ficção, embora de autoria conjunta com Ramalho Ortigão, seja possível visarmos um antecipo da novela policial de hoje. Além do mais, ainda existe um terceiro romance, A relíquia, obra em que o burlesco e o grandioso alternam, e a fantasia consegue deformar figuras, enquanto a ação desenvolve a Paixão de Cristo na serenidade da paisagem da Palestina. Eis três das narrações mais sobranceiras, mas de feição mais diferente dentro da produção queirosiana, face à mais propriamente realista.


Eça de Queirós, contudo, desenvolve uma primeira fase narrativa muito próxima dos cânones românticos. É o momento d'As prosas bárbaras e das influências de Vítor Hugo e Michelet, que há de abandonar logo, a partir da conferência no Casino (1871) em que faz condena da arte pela arte e adere ao Realismo. Acontecerá agora que, entre 1871 e 1880, escreverá uma parte fundamental da sua obra. Destarte, n'O crime do Padre Amaro foca a influência do clero na burguesia provinciana (acontece em Leiria); n'O primo Basílio há de ser uma família da burguesia média lisboeta e os fatores do adultério feminino; enquanto n'Os Maias são tratados os conflitos da alta burguesia que se entrelaça com os restos da aristocracia fundiária e certos círculos intelectuais. Em suma, conformam eles três bons exemplos dos melhores romances escritos durante este período e de adscrição plena ao Realismo.




Para a terceira das fases já, cujo elemento comum das ações tem a ver com a posição de uma personagem principal relativamente ao ambiente de Portugal, temos alguns romances como Correspondência de Fradique Mendes, A ilustre casa de Ramires ou A cidade e as serras. Fradique Mendes não é mais do que a representação de um diletante. Ele tem a pretensão de incorporar para si a maior quantidade de vivências, ora absolutamente desligado de qualquer proposta de natureza coletiva. N'A cidade e as serras volta-o a retomar, agora transformado na figura de um Jacinto de Tormes que, cansado dos “males” de Paris, das invenções e comodidades do progresso, aborrecido em definitivo, quer voltar a terras portuguesas, ao seu berço. A vida de proprietário rural, na montanha, permite-lhe usufruir as vantagens da vida rural mas sem a contrapartida do trabalho e das privações do camponês. O Eça crítico da abulia, do tédio ocioso que esta personagem estereotipada percebe sob o pretexto de se sentir insatisfeito com os meios disponíveis, é o detonante que dá origem a esta ideia do fradiquismo. Assim, Jacinto de Tormes, é desta natureza, mas achar a perfeição, o estado contrário à abulia, só é capaz de ser conseguido pelo próprio esforço, apenas é possível mais que através do trabalho.


início do Capítulo I d'A cidade e as serras 





O PRIMO BASÍLIO






edição d'O primo Basílio
Porque nos temperamentos sensíveis as alegrias do coração tendem a completar-se com as sensualidades do luxo: o primeiro erro que se instala numa alma até aí defendida facilita logo aos outros entradas tortuosas —assim, um ladrão que se introduz numa casa vai abrindo subtilmente as portas à sua quadrilha esfomeada.




ARGUMENTO

Luísa e Jorge é um casal pertencente à burguesia média de Lisboa. Ambos levam uma vida fácil e feliz, em aparência pelo menos. Recebem visitas em casa. Luísa toca o piano, faz passeios, acode a concertos e óperas, vai à igreja da Encarnação... É dona de casa e tem duas criadas que trabalham nela: a Juliana e a Joana, a cozinheira. O Conselheiro Acácio, homem ilustrado, é amigo da casa. Também o são o Sebastião, o Julião Zusarte ou D. Felicidade, que está apaixonada pelo Conselheiro e é de uma beatice parva, de uma religiosidade pouco exemplificante. Outra amiga, propriamente da Luísa, é a Leopoldina. No entanto, dessa sim que não gosta o Jorge, das suas más influências.

Por causa de uns negócios relacionados com a minaria, o Jorge, que é engenheiro, tem de partir de viagem para longe. Vai-se para o Alentejo, onde demorará por bastante tempo. O casal escreve-se com uma certa assiduidade. Fala ele do tédio. Ela, das saudades que tem dele. Entretanto, a vida de Luísa corre sempre de maneira semelhante. A vida ociosa, a que os amigos todos dela leva, podemo-la observar no decorrer da narração. O Conselheiro Acácio é um homem muito ridículo, bastante amaneirado. O primo Ernestinho quer ser adulado pela sua obra de teatro. D. Felicidade, a beata, sofre de crises gasosas e também não é capaz de atrair a atenção do Conselheiro.

A ação vem-se a enredar no momento em que se produz a ausência do Jorge. Aparece pela casa a figura do primo Basílio. O parente de Luísa já tinha estado apaixonado por ela aquando jovens. Basílio é rico agora, mora no Brasil e faz negócios na indústria do caucho com a Europa, daí a sua vinda a Portugal e a França, onde possui uma casa. No momento em que chega a Lisboa, vem procedente de Paris, cidade à que depois haverá de voltar. Ele vem acompanhado de um seu amigo, o Visconde Reinaldo, outro dândi como ele e que, além do mais, despreza a vida em Portugal. É de uma ‘aristocratice’ petulante, pois abomina dos valores burgueses como a família e a virtude, dois dos valores de que também se sentirá parceiro o próprio Basílio.

casa de Eça de Queirós na Póvoa do Varzim

O Basílio não desaproveita a ocasião de tentar os favores da Luísa. As artes de conquistador e “bon vivant” não se fazem esperar, pois atuam desde um primeiro instante em que se veem. A arte da insinuação, a corte demorada e os beijinhos furtados pelo primo fazem com que a Luísa acabe por perder a cabeça. A Luísa, com certeza, é também mulher prototípica daquela boa burguesia do momento, desses finais do século XIX. É romântica, sonhadora, lê os seus romancinhos de amores atormentados —A Dama das Camélias...—, gosta das suas soirées em casa junto dos amigos… Não obstante, sofre do tédio mais que nunca agora que o Jorge está ausente, de maneira que o primo Basílio vem para aproveitar esse vazio anímico e poder conquistá-la.

O adultério acaba-se por consumar num andar reles que ele aluga e a que paradoxalmente chama pelo nome de “Paraíso”, que fica para o largo de Santa Bárbara. As bisbilhotices são generalizadas na vizinhança. O Senhor Paula, junto com a carvoeira e a estanqueira estão constantemente a rumorejar pelas entradas e saídas do primo em casa do engenheiro, embora ele não esteja. Assim mesmo, levam conta das tipóias que a Luísa tem por costume apanhar para sair nem sabem aonde. Em casa, a criada mais velha, Juliana, suspeita da sua ama, enquanto a cozinheira, Joana, faça por se ver com o seu apaixonado galego nos momentos em que isto acontece. De quantos personagens se passeiam pelas páginas da narração, soamente o Sebastião, fidelíssimo amigo do Jorge, é quem é capaz de manter aplacado todo rumor, já que faz por comunicar à vizinhança que aquela pessoa que visitava a casa do engenheiro era primo da senhora, pelo que não havia cuidado.


Lisboa no séc.XIX















A trama complica-se desde o momento em que a Juliana, mulher que vive numa amargura perpétua, que é invejosa e rancorosa, intercepta uma carta de amor do primo Basílio dirigida à Luísa. Os presumíveis abusos de que ela se vê objeto por parte da patroa, tantos trabalhos de engomadeira, agora muitos mais por presunção ao estar o primo, hão de ser oportunamente vingados. E assim será. Trata-se do detonante que provocará a chantagem, conduzida por sua vez pelos conselhos dados à Juliana pela tia Vitória. Ela quer uma vida regalada agora. Safa do trabalho. Fala em estar doente e de ter que ir ao médico com bastante frequência. Deixa de engomar porque lhe faz muito mal ao coração, que o tem fraco. Também não arruma as alcovas nem limpa muitas vezes e sai de passeio. Além disso, exige deixar o seu quarto, húmido e malcheiroso, das águas furtadas em que ela dorme. Luísa, no entretanto, pede-lhe à Joana ajuda, mas sempre com a escusa da doença da pobre Juliana.

A boa da Joana acede aos pedimentos da patroa. Contudo, eles vão a mais a medida que os abusos da Juliana já não têm limite. São apenas as duas a trabalhar em casa: a Joana e a patroa. A saúde desta ressente-se com o passo do tempo. Joana, numa certa altura, enfrenta à Juliana. Mas isso há de ser o seu fim. Além de exigir uma recompensa muito elevada de dinheiro à patroa para que não lhe conte ao Jorge o do seu adultério, pede à Luísa que despeça a cozinheira. A Luísa, desconsolada, tem de se acolher ao mandato da Juliana e despede-a. Mariana vem para a substituir. Mas, por enquanto, não sabe a maneira de conseguir o dinheiro que lhe é exigido. A sua amiga Leopoldina, mulher casada e adúltera, aconselha a esta que procure o favor de um seu apaixonado incógnito, o Castro, um homem muito rico que com certeza lhe haveria de dar o dinheiro.
o regresso de comboio

O Jorge é recém-chegado da sua viagem de negócios. Nada suspeita de quanto está a suceder. Só sente estranheza de como a Juliana se desentende de muitos dos labores domésticos e estes são realizados pela Luísa. As escusas do coração doente daquela chegam até um limite, e a paciência do Jorge também para aturar mais esta situação. Pede-lhe à mulher que a ponha na rua de imediato. Luísa, entrementes, tem o encontro com o Castro que urdira a Leopoldina, do qual escapa trás se ver manuseada e beijocada por aquele homem adiposo e nojento. Ela, cada vez mais, sente-se enfermar. A única saída que acha é confessar tudo ao bom do Sebastião, de cuja bondade é testemunho a seguinte resposta feita à Luísa aquando lhe revela tudo e ela diz que não é uma boa mulher:



—Não há más mulheres, minha rica senhora, há maus homens, é o que há!



Teatro Nacional São Carlos (Lisboa)
Ele acede a ajudá-la. Planeia uma maneira de conseguir uma solução ao problema. Ela levará a Jorge à ópera como supresa. Enquanto eles estão fora da casa, o Sebastião presentar-se-á à porta da morada de ambos, acompanhado de um polícia, o Mendes, para tencionar amedrontar a criada. Assim fizeram. Mas a Juliana, pensando no pior, acaba-lhe por dar um ataque ao coração e morre.

A morte da Juliana faz com que regresse a felicidade à casa do engenheiro. A Joana volta outra vez. Luísa, falsamente, sente-se reviver pouco a pouco. No entanto, a felicidade pouco foi o que pôde ter durado. Volta a recair da doença e as febres acabam-na por ir consumindo. Neste tempo de convalescença, é recebida uma carta para Luísa procedente de Paris. É de Basílio. A tentação por abri-la vence e Jorge descobre tudo. Jorge nada faz por contar à Luísa qualquer coisa sobre isto, só quer que recupere a saúde e perdoar-lhe tudo. Afinal acaba por morrer. Depois disto, fecha a casa e vai-se viver com o Sebastião. O primo Basílio regressa de Paris, mas nada sabe do acontecido. Vai até à casa do engenheiro e recebe a notícia por meio do Senhor Paula. De maneira absolutamente impudica, sem escrúpulos mesmo, o Basílio nem se dói da morte da prima. Comenta cinicamente com o amigo, o Visconde Reinaldo, que antes tivesse trazido a Alphonsine de tê-lo sabido. Este, por sua vez, comenta ainda que não tinha sido uma amante chique, pois nem possuía relações decentes e, aliás, casara com um indivíduo reles de secretaria e vivia numa casinhola.



ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA OBRA

Mais uma vez, Eça de Queirós foca os defeitos da sociedade burguesa (portuguesa) com a finalidade de serem trazidos à superfície. Os vícios desta classe social, a qual vive num mundo de aparências, passam pela descrição subtil e pormenorizada das personagens que desfilam pelas suas páginas. Já estivemos a ver acima a descrição psicológica da frágil Luísa, a ser o alvo das artes predatórias de seu primo, e da malvada criada Juliana, mulher que não tem dó da sua ama, pois muito ao contrário, busca a sua ruína e humilhação por meio da extorsão. Eça de Queirós, afinal, coloca o dedo na chaga, de forma que é capaz de pôr em causa uma das instituições mais sólidas, como é a do casamento. De igual jeito que o faz por meio de Leopoldina, mulher devassa, casada, mas com uma carrada de amantes e, pelos vistos, que exerce más influências na sua amiga de velho, Luísa. O narrador até nos faz ver como a busca de novos prazeres por parte daquela tinha chegado a uma suposta relação homossexual aquando jovem:


sensualidade feminina

—Lembras-te quando estivemos de mal?
Luísa não se lembrava.
—Por tu teres dado um beijo na Teresa, que era o meu <<sentimento>>— disse Leopoldina.
Puseram-se a falar dos <<sentimentos>>. Leopoldina tivera quatro; a mais bonita era a Joaninha, a Freitas. Que olhos! E que bem feita! Tinha-lhe feito a corte um mês!...
—Tolices! —disse Luísa corando um pouco.
—Tolices! Porquê?
Ai!, era sempre com saudade que falava dos <<sentimentos>>. Tinham sido as primeiras sensações, as mais intensas. Que agonia de ciúmes! Que delírio de reconciliações! E os beijos furtados! E os olhares! E os bilhetinhos, e todas as palpitações do coração, as primeiras da vida.
—Nunca —exclamou—, nunca, depois de mulher, senti por um homem o que senti pela Joaninha!... Pois podes crer.


O Conselheiro Acácio, homem um bocadinho pateta, que só saber dizer obviedades, evita qualquer aproximação da sua fiel apaixonada, Dona Felicidade. Contudo, e pese a demonstrar essa atitude ridícula e tão formalizada, vimos a descobrir finalmente que ele tem uma relação com a sua criada. Dona Felicidade, pela sua parte, tem um proceder igualmente ridículo e até a prosa queirosiana a faz abaixar até o ascoroso quando fala em ela ter problemas de gases, ou em tentar o namoramento do Conselheiro acudindo às artes de bruxaria de uma galega que existe para as partes de Tui. O coro de bisbilhoteiros na rua da Patriarcal, ao pé da casa do engenheiro, está formado pelo Senhor Paula, a estanqueira e a carvoeira, que levam conta de entradas e saídas, e atuam coralmente numa sorte de representação dramática. Assim, por exemplo, fica patente neste trecho. O primo Basílio acaba de chegar de Paris. Desconhece que Luísa tem morto, de modo que acode a sua casa com o fim de a cumprimentar:


Basílio dirigiu-se ao Paula:
—Os senhores que ali moram estão pra fora?
—Já não moram —disse o Paula soturnamente, passando a mão sobre o bigode.
Basílio fixou-o surpreendido daquela entoação fúnebre.
—Onde vivem agora então?
O Paula escarrou e, cravando em Basílio um olhar desolado:
—Vossa senhoria é o parente?
Basílio disse sorrindo:
—Sou o parente, sou.
—Então não sabe?
—O quê, homem de Deus?
O Paula esfregou o queixo, e bamboleando a cabeça:
—Pois sinto dizer-lho. A senhora morreu.
—Que senhora? —perguntou Basílio. E fez-se muito branco.
—A senhora! A Srª. D. Luísa, a mulher do Sr. Carvalho, o engenheiro... E o Sr. Jorge está em casa do Sr. Sebastião. Ali ao fim da rua. Se Vossa Senhoria lá quer ir...
—Não! —fez Basílio com um gesto rápido de mão. Os beiços tremiam-lhe um pouco. —Mas que foi?
Uma febre! Rapou-a em dois dias!
Basílio dirigiu-se ao cupé devagar, com a cabeça baixa. Olhou mais uma vez para a casa; fechou com força a portinhola. O Pintéus bateu para a Baixa.
O Paula então aproximou-se do estanco:
—Não lhe fez muita mossa! Fidalgos! Canalha! —murmurou.
A estanqueira disse lamentosamente:
—Pois eu não sou parenta e todas as noites lhe rezo dois padres-nossos por alma...
—E eu! —suspirou a carvoeira.
—Há-de-lhe isso servir de muito! —rosnou o Paula afastando-se.

altar da igreja da Encarnação






A atitude do Senhor Paula torna-se cáustica afinal. Apanha jeitos de contestação e de tomada de consciência como estamos a ver no momento em que diz em que não lhe fez muita mossa, ou seja, que nem se comoveu sequer com a morte da Luísa, e o apelativo de canalha que dirige à classe social do Basílio, neste caso ao ser acompanhado ele de um burlesco fidalgos. A narração, a este respeito, continua ainda desta maneira, focalizando a sua atenção no Senhor Paula, para visarmos a transformação dele num cidadão convicto e íntegro na luta pela igualdade social, na aproximação ao ateísmo e, ao fim e ao cabo, fazendo-o suspirar até pela Comuna de Paris e a revolução:



Estava ultimamente mais amargo. Vendia pouco. Aquelas mortes na rua traziam-no desconfiado da vida. Cada dia detestava mais os padres e todas as noites lia A Nação, que lhe emprestava o Azevedo, repastando-se com rancor de artigos devotos, que o exasperavam, o impeliam para o ateísmo; e o descontentamento das coisas públicas inclinava-o para a Comuna. Como ele dizia, achava tudo uma porcaria.

Foi decerto sob este sentimento que voltando à porta do estanco, disse às vizinhas com um ar lúgubre:


—Sabem que é isto? Sabem o que tudo isto é? —Fazia um gesto que abrangia o universo. Fitou-as de um modo irado, e rosnou esta palavra suprema: —Um monte de estrume!

carruagem da época

O Jorge, embora percebamos nele uma certa debilidade na hora de se divertir no tempo que está em Beja, ao haver algumas damas que o adulem, é marido dedicado e entregue à sua esposa, Luísa. É engenheiro de minas, homem prático e simples, razão pela qual tanto o dandismo do primo Basílio, como o seu atrevimento e presunção acabam por lhe ganhar a partida. As artes de sedução dele e a sua personalidade mundana, com tanta vida de relações pelo mundo fora, Paris sobretudo, atuam como íman sobre a Luísa que cai nos seus braços. Luísa, no entanto, ficará abandonada, apesar de que estaria disposta a ter fugido junto dele. Mas eis a reflexão do primo Basílio a este respeito e a laia de que ele demonstra ser:



E, soprando o fumo do charuto, começou a considerar, com horror <<a situação>>! Não lhe faltava mais nada senão partir para Paris com aquele trambolhozinho! Trazer uma pessoa, havia sete anos, a sua vida tão arranjadinha, e patatrás!, embrulhar tudo, porque à menina lhe apanharam a carta de namoro e tem medo do esposo! Ora o descaro! No fim, toda aquela aventura desde o começo fora um erro! Tinha sido uma ideia de burguês inflamado ir desinquietar a prima da Patriarcal. Viera a Lisboa para os seus negócios, era tratá-los, aturar o calor e o boeuff à la mode do Hotel Central, tomar o paquete, e mandar a Pátria ao Inferno!... Mas não, idiota! Os seus negócios tinham-se concluído —e ele, burro, ficara ali a torrar em Lisboa, a gastar uma fortuna em tipóias para o largo de Santa Bárbara, para quê? Para uma daquelas! Antes ter trazido a Alphonsine!


Que verdade, verdade, enquanto estivesse em Lisboa o romance era agradável, muito excitante; porque era muito completo! Havia o adulteriozinho, o incestozinho. Mas aquele episódio agora estragava tudo! Não, realmente, o mais razoável era safar-se!



Nesta listagem de personagens de certo vulto dentro da narração ainda é possível falarmos um bocadinho a propósito do Julião e outro bocadinho do Ernestinho. No caso do primeiro, estamos a nos referir a um parente do Jorge que é visitante habitual da casa da Patriarcal. Anda a estudar Medicina, e esta é a sua única preocupação, além de a de poder ganhar uma rica clientela, demonstrando em todo o momento o seu carácter invejoso e azedo. O Julião, aliás, não é homem de poder presumir de uma boa toilette, de usarmos a terminologia tão do gosto do Eça, pois acostuma andar sujo e desarrumado.

passeio pelas ruas de Lisboa

Quanto ao segundo, o Ernestinho, dizer que é escritor. Dedica-se à arte teatral e, por influxo das mulheres da tertúlia da Patriarcal, escolhe um drama de feição romântica. A heroína da peça é mulher casada. Ela está apaixonada por um conde. Não obstante, o marido descobre o adultério. E é aí que o Ernestinho decide ir pedir conselho aos seus parceiros. Que é o que deve fazer com ela, com a adúltera? Deve morrer por causa da sua traição ou, pelo contrário, tem de ser perdoada? O Jorge é firme partidário da primeira das soluções, quer dizer, a mulher deve ser castigada e achar a morte. Ernestinho, no entanto, opta pelo indulto e o perdão, libertando-a assim de um trágico final. A peça, apesar de tudo, não deixa de ser uma clara alegoria da ação que se está a passar na própria narração, cuja solução final acaba na morte da Luísa.

cena do filme homónimo com Jorge e Luísa convalescente
Embora existam elementos românticos dentro da narração como os apontados (a idealização novelesca do amor por parte da Luísa e o desejo de abandonar o seu marido para fugir a Paris com o primo Basílio, além do final trágico dela), a conclusão do romance tem uma clara intencionalidade anti-romântica. A irreverência do Eça de Queirós mais uma vez há de ficar impressa também aqui, no seu acabamento. O primo Basílio, longe de ir visitar o marido da sua prima para apresentar os seus respeitos e pêsames, foge cobardemente, de maneira que o antagonismo ou anti-heroísmo dele faz com que se produza uma situação patética e ridícula, mesmo chegando-se a comportar com uma crueldade tamanha que o torna num ser absolutamente insensível e carente de empatia. Doutra parte, o chamado à revolta social por parte do Senhor Paula é também um claro sintoma de como a ironia do anteriormente acontecido ganha aqui mais valor se calhar, pelo menos simbólico, através das duras palavras dele que as termina com um irado e supremo Um monte de estrume!, dirigido precisamente contra a situação social injusta e, em suma, contra o abuso dessa burguesia cínica e pateta só interessada por si própria.



OUTROS APONTAMENTOS E CURIOSIDADES AÍNDA

O estudo psicológico das personagens por parte de Eça de Queirós é substantivo. Mas sobre todas as personagens, não faz questão que a Juliana, “a Tripa Velha”, “a Saca-rolhas”, “a Fava Torrada”, “a Isca Seca”, que com todos estes apelativos é chamada, é a mais desenvolvida e redonda de todas elas. O retrato que se faz dela é o de uma mulher fisicamente feia e magra, solteirona, virgem e amargurada em todo o momento, com uma vida de trabalheiras que iniciou há uma data de anos, após ter passado por muitas casas. A Luísa mal a suporta, já que o seu comportamento o acha muito cínico, pois mesmo chega a tomar ódio da forma em que ela fala, tal como se pode observar neste trecho:
a invejosa criada Juliana



—Estou a tomar ódio a esta criatura, Jorge!

Há dois meses que a tinha em casa, e não se pudera acostumar à sua fealdade, aos seus trejeitos, à maneira aflautada de dizer chapieu, tisoiras, de arrastar um pouco os rr, ao ruído dos seus tacões, que tinham laminazinhas de metal; ao domingo, a cuia, o pretensioso do pé, as luvas de pelica preta, arrepiavam-lhe os nervos.

—Que antipática!


Agora, no entanto, a Juliana vê achado o momento de perceber uma compensação a tanta má vida como tem levado, que nem para umas boas roupas é capaz de ganhar —ela pensa— e reside num chiqueiro sob o telhado. O egoísmo com que trata a solução aos seus problemas, por meio da chantagem à patroa, não tem limites. Demonstra-o quando nem se dói da coitada da Joana, a qual sai em defesa da patroa desde que a Juliana não faz mais do que se aproveitar delas duas ao se safar do trabalho, e que será por causa disto que tenha de ser despedida da casa, por desejo da Juliana.

As alusões de Eça de Queirós aos galegos, de igual jeito que recolherá em tantos outros romances seus, são também de notar n'O primo Basílio. A baixa condição social deles converte-os no alvo de diferentes visões, costumeiramente carregadas de prejuízos. A figura dos moços de fretes galegos que se tinha feito tão comum na Lisboa do séc. XIX é aqui assinalada:

objetos de engraxador




[…] e só tinha encontrado alguma simpatia nos galegos taciturnos, cheios de uma saudade morrinhenta, que vêm de manhã quando ainda os quartos estão escuros com as suas grossas passadas, encher os barris, engraxar o calçado.





Refere-se o narrador, neste trecho, à opinião que à Juliana lhe merecem os galegos. A leitura a tirar disto não é muito positiva afinal, visto o carácter malvado da criada.

A natureza do galego, trabalhador nos ofícios mais humildes, podemo-lo ver também em:

[…] pesados galegos cor de greda, de passadas retumbantes e formas lorpas.

ou

[…] e daí a pouco voltar com um galego velho e pesado, que trazia o seu saco ao ombro.



moços de fretes galegos em Lisboa










Dona Felicidade, tinhamo-lo dito acima, servir-se-á de um galego para tentar conseguir que o Conselheiro Acácio se apaixone por ela:

—Tu sabes —continuou D. Felicidade devagar, com pausas— que a minha criada, a Josefa, está para casar com o galego... O homem é de ao pé de Tui, e diz que na terra dele há uma mulher que tem uma virtude para fazer casamentos que é uma coisa milagrosa... Diz que é o mais que há... Em deitando a sorte a um homem —o homem entra-lhe uma tal paixão que se arranja logo o casamento, e é a maior felicidade.



Finalmente o negócio sai falido e D. Felicidade descarrega a sua ira sobre o malogrado assunto e sobre os galegos:

—Que te parece o mariola? Oito moedas! Eu, se não fosse pela vergonha, ia direita à polícia... Ai!, os galegos pra mim acabaram! Por isso o conselheiro não se chegava ao rego! Pudera! A mulher nunca lançou a sorte!...: —Porque se já não acreditava na honestidade dos galegos, não perdera a fé no poder das bruxas.



Em definitivo, a figura do galego não sai muito bem parada no romance. A baixa condição social, que o obriga aos trabalhos mais duros e reles, acaba mesmo na desconfiança que afinal vem a ganhar como coletivo aos olhos de D. Felicidade.









Eça de Queirós





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