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"Anátema", de Camilo Castelo Branco







Estamos perante a novela com a que, na prática, Camilo Castelo Branco se vai estrear no caminho do romance. Com antecedência já tinha publicado Maria não me mates que sou tua mãe (1848), de caráter marcadamente folhetinesco e baseado num facto ocorrido em Lisboa no ano 1848. Em Anátema (1851) recolhem-se já os elementos basilares que irão marcar a maneira de escrita do autor trasmontano. Tudo quanto se verte para este primeiro romance, vê-lo-emos, em maior ou menor medida, refletido posteriormente na obra estelar camiliana, quer dizer, no seu Amor de perdição. É interessante vermos como se explicita (cap. XVI) o sentido do título do romance nesta passagem em que fala o padre de Vilamarim, Carlos da Silva: 



—[...] Há um sangue inocente, que transuda a pedra do túmulo! Há um grito de vingança, que quer uma longa expiação de lágrimas! Há um ANÁTEMA de conjuração diabólica que vai até à última geração de uma família como um rastilho de sangue!



Numa conversa mantida entre o sapateiro, António, com Cristovão da Veiga —em quem principia tudo e é causante de todos os grandes males que se revelam no relato—, além de alguns franciscanos e dominicanos, e estando aborrecido já o nobre dos religiosos, pede-lhe conselho ao primeiro: 



—Sabes, António, as desgraças que me vão por casa? [...] Da fugida de minha filha... daquela que eu esperava ter comigo até morrer... [...]

—Olhe, fidalgo... (Note-se que o sapateiro recuperara todo o seu vigor moral.) Eu não sei quem foi a culpa destas desgraças... Por aí dizem que o Sr. Conde de S. Vicente pedira a fidalga em casamento, e que V. Ex.ª não quisera dar-lha a troco de umas desavenças sobre o sangue de cada um... Olhe, fidalgo, lá os antepassados de V. Ex.ª são de sangue real, mas os do senhor de Panóias, também diziam os velhos que não eram somenos em linhagem que os Veigas...





Mas, que é o que acontece, se em argumento falamos, a respeito de Anátema? Na novela, o padre Carlos da Silva, filho bastardo de um homem rico, deseja vingar-se da família a que pertence. A personagem odeia seu pai, Cristóvão da Veiga, que é pai também de Inês, a protagonista desgraçada do romance. Inês conta com a negativa de seu pai a casar com o Conde de S. Vicente. A presença do ódio em Carlos, é também a ocorrência de alguns factos macabros ao longo da narrativa. 



Segundo nos diz Jacinto de Prado Coelho, o romance pertence a um período de desordem espiritual do seu autor, e tal desordem se calhar seja representada pelo padre, alguém de quem esperamos bons sentimentos, como a humildade e a caridade, um indivíduo que conseguisse perdoar seu pai, justamente devido ao facto de ser padre. Mas Carlos, ao contrário de qualquer ação benevolente, tenta justificar a sua sede de vingança apresentando o diário escrito por uma amiga de sua mãe, Antónia Bacelar, e também cartas trocadas por elas. Esse conjunto forma um outro nível de desenvolvimento narrativo em que teremos notícia de como se deu a decadência de Antónia, resultado da confiança que esta tinha depositado em Cristóvão de forma errónea. O diário apresenta o discurso de Antónia que, depois de enganada por Cristóvão, entra num convento ajudada por um padre generoso que paga as despesas relativas ao seu ingresso na Instituição. Essa narrativa é carregada de emoção, dor e arrependimento, e Antónia mostra-se sem esperanças na sua vida terrena. A personagem apenas reza para que Deus acabe com a sua dor levando-a para um outro plano, que é além túmulo. É notável que, para Antónia, a sua salvação só pode passar pela morte, pois não há forma de ser feliz depois de uma tragédia como a que a ela lhe ocorre. Afinal, de facto, Cristóvão da Veiga abandona-a grávida quando ela imaginava que se casaria com o rapaz. 




Praça Amor de perdição no Porto


O carácter folhetinesco patenteia-se neste romance, com um clima psicológico em que dominam as desgraças amorosas, os destinos crueis, as vinganças terríveis e os remorsos que matam, tal e como nos tem dito Jacinto de Prado Coelho. A natureza rocambolesca do relatado dá fé deste teor folhetinesco. Contudo, e havemos de o ver depois, Camilo luta por se fazer com esse oco que ocupavam as preferências do leitorado português por aquele outro em que os autores ingleses ou franceses tinham mais sucesso. Camilo Castelo Branco consegue um misto de literatura sentimenal e gótica. Numa certa medida, o nosso autor está a atualizar ao gosto português uma tendência do romance de terror inglês junto com o romance-folhetim francês. Uma postura comum nos seus textos (o que o fazem aproximar mais do relato folhetinesco) é o facto de a Felicidade se converter num bem inutilmente atingível, de modo que é a punição o que vai prevalecer como elemento quase sempre inevitável. 



O narrador, ao longo de todo o relato, faz considerações a respeito do que está a acontecer nele. Temos exemplos abundantes em todo o texto. Veja-se a continuação esta mostra, em que o narrador discorre sobre o embate entre Inês da Veiga, Manuel Távora (Conde de S. Vicente e pretendente seu) e o padre Carlos da Silva: 



Se está decidido que os caranguejos não andam para diante, nem são estacionários, este romance é uma espécie de caranguejo literário: recua, pelo menos, vinte anos em cada capítulo! É preciso, talvez, um esforço de mnemónica para enfaixar estas personagens de retrocesso, esta dispersão de caracteres duvidosos e imperscutáveis! A originalidade, a verdade, a natureza e o mundo moral são coisas desalinhadas como o meu romance. O autor que não tem, como Afonso X, as pretensões de organizar um mundo melhor do que ele vai, entende que também não deve algemar à dedução analítica de uma novela inglesa os transportes de um génio livre, que traçara em campanuda letra do século passado estas coisas que aqui se dizem.
Não quero ser tido por uma imaginação inquieta e anárquica; mas antes quero que me chamem romancista descosido e extravagante do que me adivinhem o pensamento. O meu manuscrito, cujos episódios e peripécias constituem um grande ziguezague da inteligência, é justamente como eu, como a minha índole, como o meu romance e como eu quisera que fossem os meus leitores, para, sem o menor constrangimento, me acompanharem a transcendentes coisas passadas em 1701. [cap. V]



Palácio Mateus em Vila Real



O narrador pega neste recurso de maneira a tentar desculpar o suposto desalinho que possa encontrar de aqui em diante o leitor, o qual está cheio de digressões. Mas a estória de Inês da Veiga vai ser também contada através de um outro recurso, de um manuscrito que ele reproduzirá ao longo das páginas da novela. Em definitiva, o leitor achar-se-á num constante vaivém entre a estória narrada e as obsevações feitas pelo narrador. Destarte, são inúmeros os casos em que o narrador joga com o leitor, pois, de forma irónica, intromete-se com factos que estão a acontecer e mesmo para se burlar dos elementos românticos, e já fora da moda, que possam aparecer: 


o padre Carlos da Silva está sentado na extremidade de um escabelo, e estende o braço direito sobre uma mesa de faia com lavores dourados. […] O Conde de S. Vicente está sentado numa corpulenta cadeira de couro lavrado, e matizado de metais. […] Agora, cumpridas as leis do romance moderno, fastidiosamente localista, não há nada que se intrometa na história do padre mais romântico de que há notícia. [cap. XVIII]




Em consequência, o jogo com o leitor não há de ser tomado como uma questão menor, já que aquilo que o leitor podia julgar como algo sério e importante, tratando-se aqui da descrição aludida, acabará por reconsiderar o lido uma vez foi advertido pelo narrador a propósito da própria desclassificação que vem de fazer da sua maneira de escrever. A este respeito, faz menção ao romance francês de Eugénio Sue ou de Dumas, quando diz que, por exemplo, de existir um conflito entre dois amantes, ambos sozinhos no mesmo quarto, daria para encher quatro páginas de nervosas exclamações, além de uma de reticências. Camilo Castelo Branco, definitivamente, reclama um romance próprio, singular. Nesta primeira narrativa camiliana de grande fôlego já estão presentes a ironia e a consciência estética que hão de predominar a sua narrativa de aqui en diante; eis a prova: 


uma conversa assim tépida e familiar não interessa ao leitor, nem lisonjeia a minha felicidade de copista. Não obstante o manuscrito reza mais algumas perguntas e respostas, constantemente alusivas ao frio, à chuva e ao vento do quintal. Não protrairemos este colóquio, cheio de naturalidade e acanhamento 



Não podemos deixar de lado que outros aspectos, ora de teor mais popular, e que têm a ver coma a tradição e as crenças mais saloias, são também dignas de ser assinaladas: 


Ora, deveis de saber que um responso de Santo António se não vai direito desde o princípio até ao fim, ruim agouro é para a coisa ou pessoa responsada. Além disso, e para maior aflição da pobre rapariga, às três horas em ponto, o relógio de S. Domingos, um cão uivara três vezes ali perto de casa; e, se o medo a não engana, uma coruja grasnou sobre o telhado. Mas o que acabou de agourar grande desgraça àquela boa Gertrudes foi uma borboleta negra, que se afogou no azeite da candeia! [cap. XI]







No capítulo XII a Sra. Joaquina da Luz, entendida em feitiços, quebrantos e mau-olhados, sólida religião, e de mais de setenta anos, fala-lhes a umas vizinhas acerca do mau homem que tinha sido Vasco da Veiga, pai de Cristovão da Veiga. Ela disse-lhes que tinha pacto com o Diabo. Veja-se, por exemplo, o que se fala a seguir:


—O porco-sujo apareceu ao fidalgo, em avestasma e disse-lhe: Pelos poderes que te dou, toda a mulher, que quiseres para ti, será tua, se lhe deres na saia, ou na camisa, ou no lenço da camisa, um ponto com esta agulha enfiada nos olhos da víbora. E, dito isto, o Demónio desapareceu deixando maus cheiros. 




Interessa-nos remarcar que a matriz gótica está igualmente presente em muitas descrições, evocando deste jeito elementos dessa linha romanesca. O espaço é capaz de pautar a ambientação gótica que ligará o destino trágico de D. Inês, transformando-o num locus horrendus



A faixa negra da noite cinge o véu dos horizontes. A lâmpada mortiça do crepúsculo não a ergeu ainda a mão visível do Eterno, por detrás das cumeadas do Levante. Cruzam-se os tufões, que rolam dos visos dos penhascos das serras de Santa Bárbara, Mesio e Marão. Ao fundo, na balça escura dos povoados, vai passando o vórtice do desbarate. Lascam-se as florestas vergadas pelos braços flexíveis da tempestade movediça. É o gigante da destruição, que finca um pé sobre as açoteias do castelo dos Távoras, outro nos torreões de Vila Real, e fustiga com o látego do destroço aquela natureza, que geme, estorcendo-se nos braços da procela. [cap. XI]



De igual maneira, o goticismo pode ver-se na condição melancólica de D. Inês, pois marca parte da vida dela, de cujo desequilíbrio induz-se o suicídio subsequente. O entorno da personagem parece que nos está a sugerir o ambiente que a possui. A torre em que ela está encerrada, a de Lordelo e que depois passaria a ser designada de D. Chama, e da qual se lançará, transluz novamente esse ambiente tão ao gosto da novela gótica. 



Só existe, talvez, um elemento que faria com que a novela se afaste deste ambiente gótico. Estamos a nos referir à tonalidade erótica, sobretudo a partir do momento do rapto de D. Inês. O rapto da mulher amada por parte de Manuel de Távora, Conde de S. Vicente e o instinto dominador da natureza, mesmamente arrepiante, é o único elemento discordante a este respeito. Mas apesar de tudo, a natureza afinal continua a ser colaboradora do sofrimento que D. Inês está a passar. 



Em conclusão, é claro que o romance Anátema explora elementos da novela folhetinesca de uma parte, sem deixar de explorar aqueles outros mais do gosto da novela gótica inglesa, como acabamos de ver. São, ambas, marcas bem a propósito da escrita camiliana. Mas o romance, embora não se defina propriamente folhetineso nem gótico tampouco, sim podemos afirmar, não obstante, ser firmemente camiliano.




Camilo Castelo Branco



























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