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Cinco dias, cinco noites: o interlúdio de Manuel Tiago




BREVE DEPOIMENTO BIOGRÁFICO

O nome de Manuel Tiago teve que aguardar até 1995 para poder ser ligado ao do dirigente do Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal, o qual, além da dedicação à palestra política, ainda teve tempo para pintar e escrever. Manuel Tiago, portanto, é um pseudónimo ou heterónimo do Álvaro Cunhal quanto prosista. Não faz questão que a literatura cultivada por ele esteve fortemente vinculada com o neo-realismo e, nomedamente, com uma estética que evidencia o panfletário. Dito doutra maneira, a literatura vai estar nele ao serviço da causa.

A sua escrita, apesar da sua obra ter sido publicada após a Revolução de 74, tinha sido começada na década de 50, entre a clandestinidade, a passagem pelos calabouços da PIDE, pela cadeia de Peniche, etc. O discurso de que ele se provê não foge do real, não o escamoteia, pois não tenta esconder as suas origens doutrinárias e de classe, já que, contrariamente, é a partir dele que assume um contributo ideológico contra o fascismo. A escrita de Manuel Tiago, en suma, sabe bem dos seus destinatários ou receptores, porquanto a sua verdade se exprime limpa, sem adornos, e é testemunho atento de um tempo histórico preciso que contribui para a descodificação dalguns enigmas atuais que nos sobressaltam. Também o profundo sentido do humano, do sentido moral que os comunistas devem representar para com os seus condidadãos transluz-se por meio da sua escrita. O sentido, enfim, da lealdade, da fraternidade, da justiça e do sacrifício. Por conseguinte, a literatura assim entendida ajudaria a participar na transformação social, observado do ponto vista da dialética marxista.


António José Saraiva e Óscar Lopes têm assinalado na sua História da literatura portuguesa como Até amanhã, camaradas! consegue ser o mais exemplar dos seus romances, o mais vivencialmente denso de todos os escritos por ele, o qual se baseia numa intensa e íntima experiência de organização clandestina. A este romance, aliás, pode-se-lhe ainda acrescentar Cinco dias, cinco noites, uma excelente e conseguida novela sobre o salto da fronteira de uma pessoa por motivos políticos. Em consequência, a narrativa de Manuel Tiago goza de uma visão quase romântica da função que há de cumprir a literatura, isto é, esta serve de esconjuro e de referente para a sociedade. Assim pois, em A casa de Eulália, outra das narrações importantes, relata-se-nos como foi que os comunistas portugueses participaram tentando impedir o avanço na Península da besta nazi —no assalto ao Cuartel de la Montaña e a Carabanchel, em Madrid, no Guadarrama, em Somossierra, e durante o cerco e os bombardeamentos dos nazi-fascistas italo-alemães.

Só foi a partir de 1995, como dizíamos, que o histórico líder comunista, Álvaro Cunhal, deu a revelar quem era deveras Manuel Tiago. No entretanto, as três narrativas que acabamos de assinalar, já tinham sido publicadas. Até amanhã, camaradas! mesmo foi adaptada para a televisão por Joaquim Leitão e Cinco dias, cinco noites foi levada ao cinema, por José Fonseca e Costa, em 1996. A este respeito, fica claro que a linguagem narrativa de Manuel Tiago se revela nitidamente cinematográfica, sendo ela muito visual, com uns cromatismos, uns claros-escuros que a descrição desenvolve com verdadeira precisão, daí terem sido objeto de realizações cinematográficas.













































CINCO DIAS, CINCO NOITES: ARGUMENTO, TEMAS E ALGUM APONTAMENTO MAIS

O André conta com apenas 19 anos. Vai ser o nosso protagonista. Tem de “emigrar”, tal é a forma em que fica dito ao princípio do relato. Mas sabemos que esse “emigrar” guarda outra razão de ser muito diferente e de mais fundo calado. O André tem de sair do país, e fa-lo-á para a Espanha, pois intuímos que existe uma poderosa razão, aliás nunca desvendada, para ele ter que passar de maneira clandestina a fronteira.

O assunto é tratado no Porto. Ali combina com um camarada para ter com outrem, um contrabandista que faz os seus negócios pela raia, com o fim de que o ajude a chegar, seguramente, à Galiza. O André, afinal, conhece ao Lambaça, o tal contrabandista.

De 40 a 50 anos, o Lambaça, baixo e seco, tinha um rosto sombrio, de um moreno forte, realçado pela barba cerrada, a escova negra do bigode e uns olhitos pretos e observadores. Pelo seu trajo, um fato preto enrugado e acanhado e um chapéu igualmente preto enterrado sobre as sobrancelhas, dir-se-ia um pequeno lavrador endomingado. Mas em todo o seu físico, na rigidez do tronco e no dispor das pernas, nos gestos e olhares, transparecia qualquer coisa que o distinguia de um vulgar lavrador, qualquer coisa de arrogante, ousado e impertinente.

A descrição não deixa lugar a dúvidas. A adjetivação, quer dizer, os qualificativos de 'arrogante', 'ousado' e 'impertinente' fazem-no diferente —ao Lambaça— a um comum lavrador e, por esta mesma razão, motivo para a desconfiança que lhe há de ter. Desde o instante em que se conhecem, produz-se um desagrado entre ambos. O Lambaça acreditava em ter que passar a fronteira a um dirigente importante e o que acha é uma criança insignificante e inofensiva. Neste facto resume-se o início do que vai ser de agora para a frente o decurso da narração.
Estação do Porto (alfândega)

Saíram primeiro de comboio, depois seguiram de camioneta. Há uma primeira povoação, uma aldeia em que, de longe e do autocarro, estão a ver que os guardinhas pedem a documentação. O Lambaça aconselha-lhe ao André que desça do veículo e passe a pé pelo lado dos polícias, que nada lhe há de acontecer, porque não lhe hão de pedir a documentação. Vai ser este o primeiro e estranho contato com a realidade que vai viver com o contrabandista do momento em que saíram do Porto. A desconfiança, novamente, é clara no André. Que garantias vai ter de que não lhe peçam a documentação, de que não o detenham aí mesmo? De qualquer maneira, sai airoso desta primeira prova. No entanto, ele segue a caminhar por onde fora mandado mas a camioneta não pára para outra vez recolhê-lo.

Eis o primeiro episódio em que acaba por haver já um enfrentamento entre os dois. O André sente-se desamparado, mas vai-se topar de novo com o Lambaça numa taberna. As falas com ele não são muitas. Os gestos, o comportamento em geral é rude para com o André. A informação que lhe fornece, e que lhe é pedida com insistência pelo homem a escapar, nunca lhe é aclarada. O carácter do Lambaça pode-se dizer que é soturno, além de se comportar com uma sorte de instinto animal por vezes, de uma maneira muito básica mas seguro de si próprio. A relação que existe no momento em que chegam a uma casa isolada em que habitam dois velhos e uma mulher moça que amamenta um bebé, é, decerto, esquisita. As olhadas da rapariga para com o André, os afagos que o Lambaça dá e ela recebe, a situação afinal é mesmo incómoda, ambígua. Sabe-se depois que a mulher tem relações com o contrabandista e, além do mais, que se presupõe que há de ser uma prostituta.
Serra Amarela (Parque Peneda-Gerês)














A novela é, sobretudo, psicológica. O mais importante são as relações e os comportamentos humanos. Não é tanto o que se diz ou como se diz, mas o que se desprende e deduz pelo dito. Temos de ir desentranhando quanto existe por baixo, quer de falas quer de gestos. Apela-se à cumplicidade do leitor para ele poder ir descodificando o que não é expressamente dito. As coisas fazem-se numa espécie de se deixar ir, transparecendo-se disto uma naturalidade que roça o mais institivo e básico. A narração, e é nisto em que fazemos referência ao termo 'interlúdio' do título, é muito diferente a tudo o restante da sua prosa. O tom condutista, o realismo social em que se produz a necessidade do adoutrinamento ou a denúncia da opressão de maneira evidente de parte do narrador, mesmo maniqueia, faz-se a um lado neste romance breve. O argumental é quase um ator secundário, enquanto as personagens, o André, o Lambaça e a Zulmira são sobre os que na verdade recai o discurso narrativo.


A partida desta casa para já se encaminharem para a fronteira definitivamente, traduz-se num novo inconveniente para o André. Esse último dia de que Lambaça lhe tinha falado para poderem atingir a fronteira, desfaz-se no momento em que, depois de terem caminhado muitas léguas e em redondo, acabam por chegar ao mesmo ponto, à mesma casa do princípio. A tensão percebe-se outra vez, mas também a indulgência do trato do Lambaça para com o André e a Zulmira. Ele, André, pode-se deitar com ela, mas há de ser ele, o Lambaça, quem passe a noite toda com Zulmira. O dinheiro, doutra parte, é outros dos motivos de deconfiança, porquanto o André sempre está com medo de que possa ser roubado pelo Lambaça. Nunca acaba de ver o momento em que vai ser capaz de passar a fronteira. Mas ao dia seguinte, por fim, é deixado já do outro lado. Lambaça indica-lhe o que tem de fazer para chegar à estação do caminho de ferro e assim é que se despedem.

terras da Serra do Gerês

Finalmente, o Lambaça cumpre com a sua palavra. O dinheiro acordado é o que ele recebe, mais nada que aquele. As formas rudes, o amuamento a que ele se entrega de jeito costumeiro, ao tempo que o estranho comportamento dos camponeses que nada perguntam, que dão pousada e comida e até conforto sexual se se quiser, não prejudicam a empresa. Faz parte, se calhar, do seu quotidiano. São seres arraianos que vivem nessa situação de equilíbrio entre a pobreza da sobrevivência diária, dessa dura vida na montanha e do pouco dinheiro conseguido através de uma atividade ilegal e, além do mais, perigosa. Para eles, em definitivo, não existe transformação social, mudança de rumo e de vida, tão só sobrevivência, e eis o que ocorre ao longo da narração. Esse naturalismo, essa apresentação das suas vidas tal e como são vêm a dar bem com as formas do contrabandista, por se apresentarem como complementares. Até que afinal, o ponto em que ambos os personagens principais se sentiam tão desencontrados (protagonista, o André; antagonista, o Lambaça), acaba-se por converter em encontro. A fidelidade mostrada, mesmo nos momentos de maior risco (no autocarro iam guardinhas por isso que não tinha parado, a decisão de voltar aquando estavam acabados de acordar depois de dormir numa cova por medo a ser descobertos), fazem com que o Lambaça não seja o homem sem escrúpulos de quem havia que desconfiar.
Serra do Montesinho

Este texto, mais do que aquilo que omite (ou transfigura) é o que revela: o mundo arcaico da nossa ruralidade, dessa ruralidade que o fascismo mitificou; o silêncio compungido dos que vivem cercados pelo medo e pela ignorância e têm existências minguadas, aos rés da sobrevivência. Um mundo triste e violento (até a serra é «hostil» e «fria», «pedregosa e nua», diz-nos o autor) quase desumano. Mundo em que as mulheres, «mesmo nascidas para serem amadas», se vendem e em que os homens (Lambaça) jogam, sem consciência de classe, por mero instinto ou manha ancestrais, o jogo perigoso de contornar a permanente vigilância dos esbirros. Lambaça, beberrão, machista, marginal, cadastrado, faquista e desordeiro (e como Manuel Tiago consegue, de forma ímpar e sem paternalismos, penetrar esse mundo de marginais, de deserdados, de pequenos crápulas) é, no entanto, capaz de gestos generosos, com um peculiar código de honra, quando recusa, já na fronteira, receber de André, o jovem revolucionário, pagamento pelos serviços prestados.

[Domingos Lobo no jornal Avante para o centenário de Álvaro Cunhal.]

Eis, em definitiva, o romance, ainda que breve, mais diferente de todos quantos tem escrito Álvaro Cunhal, desculpem lá!, Manuel Tiago. Uma narração de personagens, de profundas raízes psicológicas e que faz participar ativamente o leitor para a sua interpretação. O condutismo, o alegato panfletário, o pedimento para a contestação não está à vista, pois que à vista o que está são os comportamentos duns seres que, ainda que envolvidos pelas circunstâncias, contam com luzes e sombras. Em suma, a imperfeção do ser, do indivíduo, submetido às mais difíceis provas é o que aqui se nos quer apresentar.




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